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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

CARANGUEJOS VERMELHOS





Nagazaki

Período Edo, vigésimo ano da era Shohô.


​Calmamente, Ozuma se levantou, com um sorriso de escárnio e a mão direita sobre a espada presa à cintura. De pé, sua imagem só não era totalmente estática por causa do indicador que martelava a extremidade do cabo, como se marcasse o tempo. Encarou o amigo Sato, sentado e totalmente indiferente, com a guarda aberta, olhando fixamente para um objeto exótico sobre o tatâmi: um livro.
Mestre na arte da dissimulação e da esgrima com a espada curta, Ozuma tinha estatura média e ainda exibia uma musculatura impressionante, apesar dos quase sessenta anos. Sobrancelhas erguidas, a mandíbula caída, tinha no olhar um típico espalhafato que só lhe acrescentava em vivacidade.
Indiferente à ameaça potencial de Ozuma, Sato se perdia em recordações e conjecturas sobre um verão especialmente quente: obcecado em varrer o povo cristão do Japão, Tokugawa Ieyasu ordenou várias missões com este objetivo, e Sato e seu feroz amigo Ozuma participaram de várias delas.
Daquela época, nenhum acontecimento marcou tanto a história dos dois quanto o cerco ao castelo Yamada. Convertidos ao cristianismo por missionários jesuítas, acusados de traição, os Yamada se renderam pacificamente, o que motivou Tokugawa a lhes oferecer o perdão em troca da apostasia. O patriarca Tetsu Yamada recusou a oferta, e foi seguido por cada um de seus filhos e netos. À noite, todos foram conduzidos à "colina dos mártires".
- Poupe ao menos a jovem mestra, maldito Ieyasu! – gritou o mais humilde bobo da corte, em defesa da pequena Sayuri Yamada, a caçula do clã.
Sato se aproximou da pequena Sayuri, presa por cordas a uma enorme cruz de madeira:
- Apostasie logo, menina, e poderá descer da cruz. Viverá em minha casa, onde vai poder brincar quando quiser com as carpas do lindo lago em meu jardim. Há também servos e esquilos voadores na mata ao redor. Ali, há tantos vagalumes no céu que, se não fosse o brilho da lua, jamais saberíamos quando a noite chega.
- Obrigado, tio, deve ser mesmo lindo o seu jardim. Mas em breve estaremos todos felizes na casa do Senhor. O tio também, se quiser, pode vir comigo.
Sorrindo, a menina começou a cantar Garasha no Ume e todos a acompanharam, inclusive dezenas de camponeses que assistiam a tudo. Muitos deles suplicaram para se juntar aos Yamada no martírio pelo fogo. Na manhã seguinte, tudo que restava era um punhado de cinzas.
Além de samurais a serviço do xogum, Sato e Ozuma eram sócios num plano secreto, que Ozuma gostava de chamar de "o grande ardil da raposa". Naquele verão, cálculo e intenção se transformaram em ato prático – e, como estimavam os próprios pescoços, decidiram se separar por quase seis anos, desaparecendo na estrada até que aquele dia chegasse.
Enquanto aguardava pelo sócio no local combinado, Ozuma se embebedava. Estava prestes a cair quando reconheceu uma silhueta longilínea se insinuando calmamente pela porta entreaberta da taverna. Uma súbita alegria tomou conta de Ozuma e ele ergueu a taça, saudando aquela figura discreta:
- Irashaimase!

​- Ozuma, controle-se. Você deveria ter escolhido um lugar mais discreto para nosso encontro.
​- Sato, ninguém serve um tofu melhor do que o desta taberna. Melhore essa carranca e me agradeça por se tornar um homem rico.
Era gritante a diferença de ânimo dos dois. Sato era a personificação da apatia, mantinha o cenho contraído e nunca bebia, erguendo às vezes a taça até próximo da boca semiaberta, mas parando nessa posição por uma eternidade, olhando o vazio...
- Doente, Sato?
​- Diga-me, Ozuma, você teve algum problema ao chegar em Nagasaki? Vi um pandemônio em torno de um posto de fiscalização perto daqui. Está envolvido nisso? Não devemos chamar atenção.
​- Minha espada agiu antes que eu tivesse pleno domínio da situação, Sato. Lamentei depois: aquele guarda até que era bom garoto.
​- Mas por que não o evitou? Já se esqueceu do preço oferecido por nossas cabeças?
​- Eu perderia pelo menos mais um dia pra chegar até você. Por favor, vamos esquecer este assunto e juntar logo as duas metades daquele lindo mapa. Já esperamos demais, durante seis longos anos…
​- Ainda temos que conversar, Ozuma. O que você fez durante esse tempo?
​- Trabalhos avulsos como yojimbo. Há tantas vantagens na estrada! Assim que descobrem que você é ronin, todos se borram de medo. Mas confesso, Sato: só na guerra eu encontrava algum entusiasmo. Hoje me falta um sentido na vida. Definitivamente, a paz não me cai bem. Sinto saudades de nossas “caçadas" (engole o saquê). Aliás, você saberia me dizer o que atrai tantos albatrozes à baía de Hokkaido?
​- A desova dos caranguejos vermelhos.
Nesse exato momento, Ozuma abriu um sorriso tão cheio de dentes que seu rosto ficou semelhante ao de um onigawara.
- E não é que o diabo guardou o código usado em nossa última missão? Vejo que ainda sobrou um pouco do velho Sato em você, rapaz. Vamos, beba logo!
- Ozuma, você ainda se lembra daquele cerco que montamos ao clã Yamada? Os fatos daquela noite por acaso lhe vêm à memória, como aquele coral incessante de vozes?
- Só me lembro do fedor de ossos queimados na manhã seguinte.
- Sayuri Yamada! Você se lembra dela? Tinha uns sete anos de idade.
- Agora que falou, lembro-me daquela bruxinha: havia algo de estranho em seu olhar. Todos notaram.
- É verdade. Havia algo incomum em seus olhos, a mesma coisa que reconheci de uma outra ocasião, quando ainda era menino, numa noite chuvosa, alguns dias depois da batalha de Sekigahara. Encontramos um soldado das forças leais a Toyotomi, tentando se esconder no celeiro de meu pai. Estava muito ferido. Meu avô cuidou dele e me explicou que aquele pobre desventurado tinha o "olhar da morte", que só era encontrado nas testemunhas de massacres incontáveis. Diga-me, Ozuma: você é um homem sem nenhum arrependimento?
- Se estiver pensando em devolver nosso ouro, Sato, me avise: minha espada lhe fará um grande favor.
- Estou me referindo ao martírio dos Yamada.
- Exceto pegar o ouro espoliado dos templos dos kirishitan, tudo o que fizemos foi seguir as ordens de nossos senhores.
- Mas qual a lógica de tanto ódio?
- Não se deve facilitar a entrada ao invasor estrangeiro, Sato. Em Shimabara, os kirishitan nos deram muito trabalho, como você sabe. Tokugawa cumpriu apenas o seu dever como chefe de Estado. Além do mais, como você deve se lembrar muito bem, os Yamada pareciam felizes por morrer em suas malditas cruzes.
- Tinham a plena convicção de que a morte os libertaria.
- Como assim?
- A pequena Sayuri sorriu para mim naquela noite. Continuei ouvindo o canto dos Yamada durante meses. No início era como um sussurro contínuo, que até dava para ignorar. Depois, dormir foi se tornando quase impossível...
- Chegou a pensar em suicídio?
- No início, é claro. Depois comecei um diálogo com a minha loucura. Certa noite, Ozuma, quando finalmente consegui dormir, a pequena Sayuri me apareceu num sonho, carregada nos braços por uma bela senhora cujos olhos eram as nascentes de um grande rio...
Ozuma ergue as grossas sobrancelhas e engasga com saquê.
- Grande rio?! (Tosse)
- Sim, Ozuma.
- É uma lástima ver um guerreiro como o grande Sato tão cheio de suscetibilidades. Você precisa de uma mulher imediatamente. Conheço uma casa excelente em Kyoto onde um rapaz bonitão e rico como você será muito bem recebido.
- Você acha possível que exista outra existência além desta?
- E como poderia ser tal coisa? A vida eterna, o nirvana? Reencarnar como um crisântemo no alto da montanha? Quer saber se alguma dessas possibilidades me produz grande entusiasmo? Não.
- Acho que talvez exista algum tipo de realidade sem limitações corporais. Imagine um plano em que o tempo sequencial dê lugar à total simultaneidade...
- Ajude-me, Sato. Aonde quer me levar com essa conversa?
- Francamente, não vejo mais este mundo como sendo real... Não plenamente.
E Sato cuidadosamente põe sobre o tatâmi um livro com um estilo de encadernação semelhante ao desenvolvido por padres jesuítas. Em uma de suas missões, Ozuma já tinha visto aquela mesma capa dourada com exatos caracteres romaji no topo e, no centro, o símbolo da cruz em alto-relevo.
- Minha metade do mapa está entre as páginas deste livro, Ozuma.
​Ozuma esvaziou a taça e suspirou profundamente, assumindo em seguida a postura de guarda, de pé. Sato permaneceu imóvel por um longo minuto, antes de finalmente olhar para Ozuma e perguntar:
- "Sequer ao céu abre a guarda, caranguejo da pata pesada?".
- Um ótimo poema para a hora de morrer! Se quer tanto conhecer o outro mundo, vou ajudá-lo. Onde está sua espada?
- Não tenho mais espada, Ozuma.
- Você virou um kirishitan! Por que não pensa naqueles cinco milhões de ryôs? Em dez dias você teria seu próprio reino e se perguntaria onde estava com a cabeça enquanto me dizia tanta bobagem.
Sato permaneceu calmo: estava pronto para morrer. Depois de algum tempo, a ira de Ozuma também se aplacou e ele acabou se sentando sem precisar desembainhar a espada. Não seria naquela tarde que a morte chegaria para um deles.
- Outrora, quando existia alguma piedade em meus ossos, Sato, dificilmente eu o deixaria vivo após encontrá-lo num estado tão lastimável.

- Não vai matar este traidor, Ozuma?
- Meu humor está bom demais para me sujar de sangue, Sato. Sou um ronin agora, e já não devo obediência a nenhum Ieyasu, a nenhum deus ou demônio. Apenas aguardarei pela chegada da minha morte. Espero que ela venha na lâmina ligeira da espada, atravessando esta rude carapaça como um raio.
Ozuma bebe mais saquê e em seguida guarda o exótico livro em sua bolsa de viagem.
- Desejo-lhe saúde, Sato. Venha até mim assim que recuperar o juízo. Creio que o futuro ainda nos reserva algumas surpresas.
- Sim, o futuro... A toda hora ela me revela coisas sobre o futuro.
- Ela...? A bela senhora que você viu em sonho? Ela disse alguma coisa sobre este seu próspero amigo?
- Ozuma, a senhora de cujos olhos brotam um rio me fala agora sobre essa terrível força destruidora, sobre o ódio de uma estrela que um dia se desprenderá do céu, caindo sobre Nagazaki, transformando a terra numa enorme fornalha e enviando centenas de milhares de almas para Yomi.
- Are are! Será que essa tal senhora realmente sabe alguma coisa sobre o futuro, meu pobre amigo? E se a história humana acontecer como se fosse um improviso?
- Ela acabou de me revelar isso, Ozuma. Posso vê-la neste exato momento. Ela está aqui, sentada bem ao seu lado.


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domingo, 13 de março de 2016

HORA DERRADEIRA...



num breve cochilo, inconsequente

em que sonhava suplicar ao Criador

por uma nova chance na semente

por um refúgio na imanência atroz

ou lá na Praia do Arpoador

pairando no alto como um albatroz



enfrentar o medo é a disciplina

tão necessária a encontrar a voz

e arcar com o preço aqui em cima

aceitar a verdade amarga da lima

quando desabando aos pés do algoz,

não há consolo algum, nem a morfina.



o coração me grita  "à direita!"

vou-me ajustando à órbita perfeita

apresento-me à colheita de alma liberta



fluo do cosmo ao infinito que se abre

a toda uma narrativa que cabe

na tua palma aberta

terça-feira, 27 de março de 2012

PERDOEM-me POR ISTO...



OLHOS VÍTREOS


Consciente de um instinto sórdido terrível,
a inércia das coisas não me aterra, entedia...
medito na lógica deste cosmo perceptível
e com o tempo sobejam o torpor, a apatia...



Sem rumo, num labirinto de perguntas oscilo
habitado por hordas de demônios subjetivos.
Sou espectro disforme, e na bruma me instilo
vagando insone por entre os mortos-vivos.



Exausto demais para suportar tudo,
rumo aos subterrâneos do absurdo...
um deus-profeta, onírico, abre a porta



e - Finalmente! – diz ele, em língua morta.
Olhos inquisidores me fitam, marcho a esmo...
no olhar vítreo, conheci-me a mim mesmo!




Rubens Carneiro
Portel,31/01/2004

sábado, 11 de junho de 2011

LA ROSA

La rosa

El cuchillo corta
Mi alma muerta
Y en este corte
Lees mi suerte

Suerte que niega
Pasion que ciega
Recuerdo tu gusto

Que me envenena
Recuerdo tu rosto
Que me condena

Senti hambre
No sé el nombre
De aquella rosa
Que brota e huye

terça-feira, 7 de junho de 2011

POR QUE ALGUMAS LEMBRANÇAS PODEM SER CONSTRANGEDORAS? Um exemplo:

ETERNO SEGUNDO


Amigos ausentes, cidade amarga,
ruas sem criança, visão acinzentada.
O estranho retorna, nos bolsos nada...
fora uma arma e, na mão, uma chaga.

Em sua alma um recôndito segredo.
Um pensamento obscuro, circunspeto...
o cenho franzido, sem sorriso, inquieto...
não há mais dor, não há mais medo.

Ecoando por ruas que se dissolvem,
casuais olhos castanhos o movem
até lembranças de um certo amor...

um último sossego, um último estertor...
um invulgar instante de sono profundo
na imensidão de um eterno segundo...



Rubens Carneiro
10/02/2004





Location:R. Gen. Osório,Jundiaí,Brasil

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A ROSA

A   faca  corta
Minhalma  morta
e   neste   corte
Lês  minha  sorte

Sorte   que   nega
Paixão   que  cega
Lembro  teu  gosto

Que  me  envenena
Lembro   teu rosto
Que   me  condena

Senti  a   fome
Não   sei  o nome
Daquela      rosa
Que brota e some